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Dr. Avelino Guedes Cibrão |
A VIDA E OBRA
DE
AVELINO GUEDES CIBRÃO
(Por Miguel Martins de Menezes)
NOTA EDITORIAL
Hoje, dedico aqui uma curta biografia da vida e obra do Dr. Avelino Guedes Cibrão, um referencial histórico da Fundação António Luís Oliveira da qual foi um dos principais obreiros.
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Dr. Avelino Guedes Cibrão com o Falecido Presidente Arquitecto Carlos Ramos |
Este " Blog" pretende reparar uma injustiça: lembrar o homem e o cidadão que com amor e sacrifício da própria vida colocou de pé a hoje intitulada Fundação António Luís Oliveira. Notável o trabalho do Dr. Avelino Guedes Cibrão, sobretudo se meditarmos nas condições em que este cidadão dedicou a vida a esta instituição.
Esta longa sucessão de artigos pretende lembrar à "Liga de Amigos" / "Assembleia Geral" da Fundação António Luís Oliveira o seu legado.
A instituição necessita de pessoas com capacidade para gerir aspectos e recursos que possam determinar as actividades da pedagogia institucional. Estabelecer parâmetros destinados a orientar e diagnosticar as práticas institucionais com a finalidade de identificar os factores que possam afectar o desempenho individual ou colectivo dos membros ao nível organizacional, não interferindo negativamente nas expectativas e consequentemente equilíbrio da vida das crianças da instituição perturbando estas ao nível emocional.
BREVE NOTA HISTÓRICA
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D. Sancho I |
Avelino Guedes Cibrão nasceu no dia 15 de Janeiro de 1947 na freguesia de Andrães, concelho e distrito de Vila Real. A Freguesia de Andrães referida no foral de Abaças de 24 de Abril do ano de 1200, define os limites do termo daquela terra que em 1202, dois anos mais tarde, D. Sancho I - cognominado de "O Povoador " manda povoar.
Quarto filho do primeiro monarca português D. Afonso Henriques, foi baptizado com o nome de Martinho, por haver nascido no dia do santo com o mesmo nome. Martinho não estava preparado para reinar, no entanto, a morte do seu irmão mais velho, D. Henrique, quando contava apenas três anos de idade, levou à alteração da sua onomástica para um nome hispânico, ficando desde então a chamar-se Sancho Afonso.
Sancho I dedicou muito do seu esforço governativo à organização política, administrativa e económica do seu reino. Acumulou um tesouro real e incentivou a criação de indústrias, bem como a classe média de comerciantes e mercadores. Sancho I concedeu várias cartas de Foral, principalmente na Beira e em Trás- Os -Montes criando assim novas cidades, e povoando áreas remotas do reino, em particular com imigrantes da Flandres e Borgonha ( actual França).
O rei era conhecido pelo gosto das artes e literatura, tendo deixado vários volumes com poemas. Neste reinado sabe-se que alguns portugueses frequentaram universidades estrangeiras e que um grupo de juristas conhecia o Direito que se ministrava na escola de Bolonha. Em 1192 concedeu ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra 400 morabitinos para que se mantivessem em França os monges que lá quisessem estudar. O seu Túmulo encontra-se no Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, ao lado do túmulo do pai D. Afonso Henriques.
O rei era conhecido pelo gosto das artes e literatura, tendo deixado vários volumes com poemas. Neste reinado sabe-se que alguns portugueses frequentaram universidades estrangeiras e que um grupo de juristas conhecia o Direito que se ministrava na escola de Bolonha. Em 1192 concedeu ao Mosteiro de Santa Cruz de Coimbra 400 morabitinos para que se mantivessem em França os monges que lá quisessem estudar. O seu Túmulo encontra-se no Mosteiro de Santa Cruz em Coimbra, ao lado do túmulo do pai D. Afonso Henriques.
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Maravedi (morabitino) em ouro com a efígie de Sancho I |
Andrães, tal como todas as demais freguesias do actual distrito de Vila Real, eram pertença dos Marqueses de Vila Real. Em 1641 Andrães passou para a posse da Coroa, quando o Marquês e o seu herdeiro foram executados sob acusação de conjura contra o rei D. João IV. Em 1654, passou a integrar o património da então recém-criada Sereníssima Casa do Infantado, situação que se manteve até à extinção desta, aquando das reformas do Liberalismo.
A INFÂNCIA E ADOLESCÊNCIA
DE
AVELINO GUEDES CIBRÃO
Como todos os seres humanos, Avelino Guedes desconhecia as surpresas com que a vida o iria presentear. Vivia numa sociedade silenciada, espremida pelo punho fechado do ditador António de Oliveira Salazar. Se todo o território de Portugal sofria da mesma clausura, a Região de Trás-Os-Montes era uma das que mais padecia por este isolamento determinado pela cadeia de serras do Marão.
Uma imensa barreira natural, política e administrativa, separava o mundo de Avelino e o "outro mundo". Trezentas e quarenta curvas para cima e curvas para baixo, descendo e subindo de carro durante quase quatro horas. Na época os carros eram inexistentes, a viagem era feita num burro albardado carregado com os parcos pertences dos aventureiros que se arrojavam nessa região de terras bravias e agrestes, esquecida de Deus, sem acesso a vias de comunicação, eletricidade, saneamento básico, saúde ou universidades.
A íngreme cadeia de montanhas era uma imensa barreira, quando as primeiras viaturas surgiram a distância atenuou-se, embora o pesadêlo continuasse. Anos mais tarde surgiram as ligações rodoviárias, as camionetes do Cabanelas transfegavam entre curva e contra curva com o lento queixume dos esforçados motores que que roncavam para a muito custo ligar este mundo alheado à cidade do Porto. O viajante ansioso esperava pela chegada a Amarante, onde a paragem obrigatória no Largo do Arquinho retemperava as forças para efectuar a segunda parte do trajecto até à cidade invicta.
Os habitantes viviam a solidão deste confinamento de modo rotineiro, trabalhando o dia inteiro, e sempre que possível descansando a noite toda nas casas construídas por pedras, para no dia consecutivo poderem enfrentar os duros desafios de sobrevivência. Uma realidade hostilizada pelo tempo e ignorada pela desditosa pátria que havia acolhido os filhos no ventre tirano de uma nação enclausurada. As pedras que formavam paredes, janelas, portadas e alpendres, eram a justa imagem dessa dureza cujo gêlo cobria nos invernos rigorosos, suportando casas e habitantes sem queixume.
O ambiente da aldeia de Andrães era indiferente a esta dura realidade, o esforço para sobreviver alheava o povo do estado de consciência e causas das próprias limitações. Avelino levantava de manhã, cedo, ao primeiro cantar do galo saia da cama que partilhava com o irmão para ir para a fria escola onde completaria a quarta classe. O calor do Sol ficava de fora lambendo os blocos de granito da construção enquanto no seu interior as crianças tremiam de frio. No regresso, quando a tarde já acariciava a noite, Avelino ia para o campo ajudar o pai. Os aldeões diziam: " o trabalho das crianças é pouco, mas quem não o aproveitar é louco".
Andar na rua era um desperdício impensável, assim pensava o pai de Avelino Guedes. Este homem endurecido pela realidade que se impunha para sobreviver, suportava com muito esforço a numerosa família com nove filhos. Não era desumano, o sofrimento e a vida moldara-lhe a tempera para que o sustento chegasse com o esforço de braços endurecidos, mãos talhadas pelos sulcos da terra que amolecia a cada golpe, até que as primeiras batatas desabrochavam das agruras da vida e das geadas que de modo indiferente queimavam as plantações sem dó nem piedade.
Aquela rotina era sempre a mesma, trabalhar o dia todo, descansar a noite toda para voltar a trabalhar no dia seguinte. Só ao Domingo se esperava um dia um pouco diferente; quando a vontade daquele Deus ausente daquelas paragens assim o determinava, e a família se reunia ao almoço na mesa para um repasto melhorado.
A ausência de infância inibira a criatividade, aquele lado da infância em que as crianças voam como pássaros sentindo-se livres. Anos mais tarde a surpresa bateria na porta de Avelino Guedes, provando ao homem que a calusura da sua criatividade se abriria, estava adormecida, latente, iria ser usada para uma causa nobre destinada a ajudar em regime de voluntariado, sem qualquer remuneração, as crianças desprotegidas daquela nação amordaçada durante os cinquenta anos que se seguiriam ao seu casamento até à presente data.
Um belo dia, numa brincadeira de amigos, fica com uma rótula exposta, a sua vida jamais voltaria a ser a mesma. Avelino puxou as pelancas tentando esconder a rótula exposta, estava preocupado... mas o severo pai compadeceu-se com o estado do filho, o homem duro amolecera o coração, levando-o ao médico, numa longa e dolorosa viagem montado num burrico até chegar à cidade de Vila Real. A família consultou vários médicos, sofrendo sucessivos internamentos hospitalares, tentativas de curas termais, mas o mal havia penetrado nos ossos do menino sem parcimónia. Foi então que descobriu que antes do acidente já sofria de reumatismo infantil, mais tarde apelidado de reumatismo articular agudo ou espondilite anquilosante, doença inflamatória crônica e sem cura que afetar-lhe-ia as articulações do esqueleto axial, especialmente as da coluna, quadris, joelhos e ombros.
Se a infância fora dura, a adolescência tornou-se impiedosa, ainda mais cruel, fazendo com que desde muito cedo Avelino Guedes fosse indilgar a vida (1), sem passar o tempo a canear (2), sorria daquelas memórias da infância, agora os trabalhos do campo eram lembrados com alegria e saudade enquanto lhe enchiam o corpo de anti-inflamatórios que ainda mais agravavam o precário estado de saúde devido aos efeitos secundários. Avelino interrogava-se sobre o futuro, uma longa luta pela sobrevivência começara a encher-lhe o cérebro de interrogações e incertezas.
Nota do Autor (1) e (2): "indilgar a vida" - sinónimo de tratar da vida, "Canear" - Cabecear com sono. variedade regional do dialecto transmontano utilizado nos trabalhos do campo afastando-se da língua padrão".
Conhecera Carol, o primeiro amor, um dia enviou uma carta confessando-lhe esse sentimento sublime e único que fazem os Homens transportar os sonhos para a realidade. Carol, levava-lhe ânimo nessa luta intestina pela sobrevivência, o inexplicável sentimento dos que amam, dava a Avelino Guedes um outro sonho, o de vencer a morte por amor à vida do lado da amada.
Naquele dia, havia pedido à mãe que colocasse a carta no correio com o sêlo dos beijos entregues no silêncio. A mãe assim o fez, e a carta prosseguiu o trajecto até que na manhã seguinte Avelino sentiu ansiedade, uma interrrogação assombrou aquela missiva de amor; o temor de que o amor que tomara conta do seu coração de criança não fosse correspondido. No dia seguinte, ao ver o carteiro carregando o pesado saco de couro cheio de correspondência, apressou o passo, o portador de boas e más novas começava a distribuição matinal das cartas na aldeia, a pedido de Avelino, condescendeu em devolver a singela carta adiando um enlace que se consumaria mais tarde.
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Num dos tratamentos diários ao lado de uma enfermeira e amiga |
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1957 Acamado no Hospital de Santa Maria |
O sofrimento de Avelino não acabaria aqui, como já não podia receber próteses devido ao fenómeno de rejeição, a equipa cirúrgica decide efectuar uma última cirurgia retirando as próteses acrílicas para efectuar uma "Garlestone Bilateral" usando a massa muscular das próprias nádegas obrigando-o a um longo e tortuoso processo de suporte do próprio peso para que os músculos transplantados pudessem ganhar calosidades nas regiões que envolviam a cabeça de ambos os fémures e do chamado pescoço femural, "Trocanter Maior" e "Trocanter Menor", até que as calosidades criadas pudessem suportar a estrutura óssea com o peso do próprio corpo. Tinha de castigar a própria carne, um cruel e doloroso processo para que a massa muscular constituída por ligamentos pudesse ajustar-se aos dois fémures e deste modo suprir a ausência da estrutura óssea.
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Avelino Guedes Cibrão numa foto com outros doentes segurando uma criança que padecia de uma grave doença |
A vida mostrara a Avelino Guedes que não era uma linha recta, mas sim um percurso sinuoso e cheio de escolhos, tão tortuosa que nenhuma magia ou ténue esperança lhe devolveria o sorriso que perdeu no dia em que espalharam na aldeia de Andrães a notícia de que nunca sairia vivo daquele hospital. Nesse dia perdeu Carol, o sorriso e a esperança... Foi um momento duro, a sua fonte de energia, alegria, o último reduto da convicção mais profunda que qualquer ser humano pode sentir abandonara-o à própria desdita.
Pouco a pouco o tempo consumia-lhe as palavras reduzindo-as ao pó frio daquele abraço perdido. A esperança metamorfoseara-se na necrose de um amanhã inexistente, deixou-lhe feridas soltas consumidas no vinagre azedo do desgosto, vivia uma dor consentida e incapaz deambulando de olhos fechados na cama nas vielas tortuosas da mente. Esse estado de consciência matava, corrompia, fazendo-o voar em pensamentos sofridos no desconforto da clausura da própria enfermidade. Tudo o que Avelino desejava era a libertação daquele estado que o despojava de todos os sentidos da vida.
A vida de Avelino Guedes Cibrão é um marco de sobrevivência para qualquer ser humano. Quando aos dez anos a doença se manifestou Avelino Guedes havia concluído a instrução primária na sua aldeia natal. Não havia estradas nem transportes, a doença anunciara-se, as dores impediam-no de caminhar os doze quilómetros de ida e volta que o separavam da Escola Comercial na cidade de Vila Real, onde os pais pretendiam que concluísse a formação académica.
Os trajectos entre a pequenina aldeia de Andrães e a cidade de Vila Real eram feitos através de carreiros de terra batida com Sol chuva e neve, de noite os lobos eram os acompanhantes dos destemidos viajantes que se aventuravam por aquelas paragens seguindo-os em silêncio entre veredas e caminhos que ladeavam a densa mata. Por essa razão, quando Avelino Guedes chegou a Lisboa enfermo aos dezassete anos, apenas havia concluído a quarta classe, a doença e as condições agrestes da vida haviam-no impedido de prosseguir os estudos académicos como desejava.
Ainda acamado no Hospital de Santa Maria, escreveu ao director da Escola Profissional do Comércio de Lisboa, inquirindo-o sobre a possibilidade de tirar o curso por correspondência ao que este acedeu após ter visitado Avelino no Hospital. Deste modo, Avelino Guedes conclui o curso de contabilidade comercial ministrado à distância, envolvido na clausura da sua carcaça de gesso.
As enfermeiras do hospital de Santa Maria tinham um carinho especial por este homem, entre mimos e poemas, Avelino conquistava a sua simpatia com um coração carente de afecto determinado pela dor e pela imobilidade. Foram estas enfermeiras a quem Avelino ainda hoje reconhece o suporte nos momentos mais penosos, aos quais sobreviveu ao longo de um cruel percurso cuja adversidade manifestara a sua permanente e impiedosa presença.
Avelino superou o momento, a enfermidade de que padecia; havia-lhe retirado de modo completo a mobilidade, mas sem perceber, aquele homem acamado desenvolvia outras capacidades, um estado de compreensão da vida e uma humanidade ainda hoje visíveis no carácter bondoso e afável de um ser simples e afável. Os horrores da sua vivência haviam adocicado, amaciado a tolerância deste homem tornando-o compreensivo até mesmo quando a indulgência não encontra explicação.
Contudo, o pesadelo de Avelino Guedes não acabara aqui. Após os três anos de internamento seguem-se mais dois anos em regime de semi-internato hospitalar, com tratamentos diários, no total cinco anos de intervenções e tratamentos hospitalares, três de internato e dois em semi-internato, Avelino Guedes sai do hospital com um metro e meio de altura, menos treze centímetros do que quando entrara para este longa e penosa via-sacra amparado por duas bengalas em formato de pirâmide - apoio de quatro pés cada - para não se desequilibrar.
Perdera a estatura física, mas o seu espírito de sobrevivência compensara-o com uma superior envergadura moral. Desta vez Avelino saía com uma outra dor, a da saudade e memória do pai que o acompanhou e que naquele momento não estava presente do lado...
IDADE ADULTA, PERÍODO PÓS HOSPITALAR
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Os Homens e as obras dão um sentido à existência humana, afinal não andamos aqui por mero acaso... Dr. Avelino Guedes Cibrão no início do seu percurso profissional |
(Continua...)
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